sábado, 18 de setembro de 2010

Estômago - Uma história nada infantil sobre poder, sexo e gastronomia, por Carlos Antunes


Título original: Estômago
Realização: Marcos Jorge
Argumento: Marcos Jorge e Fabrizio Donvito
Elenco: João Miguel, Fabiula Nascimento, Babu Santana, Carlo Briani, Zeca Cenovicz, Paulo Miklos, Jean Pierre Noher e Andrea Fumagalli

Desde que Cidade de Deus estreou por cá que me tenho lamentado de um cinema brasileiro reduzido praticamente a um único imaginário, o de "favela chique", que esconde mal a novelização da narrativa desse cinema.
Estômago prova que há mais e mais interessante para ver, prova que o cinema brasileiro tem uma vitalidade da qual se devem tirar lições.


Isto não significa que o filme deixe de colocar boa parte da realidade brasileira à nossa frente, os seus problemas não são escondidos.
A prostituição, o êxodo para a cidade, a criminalidade, as origens variadas da população do país.
Os problemas estão lá mas são contexto, não há crítica social implícita, apenas a realidade a fundear uma excelente história sobre um excelente personagem.
Raimundo é memorável, uma personagem que nasce de um estereótipo - o nordestino exilado e vítima das agruras da cidade - e vai construindo uma base muito forte que o transforma, que o revela e que o faz extravasar qualquer ideia feita.
João Miguel é o culpado, um grande actor que não tínhamos tido oportunidade de conhecer. A forma como ele inicia a sua presença quase a medo e começa depois a ganhar a confiança que o leva a ocupar o ecrã sem que consigamos precisar em que momento isso se deu.


Os restantes actores são tão ou mais talentosos, mas o filme é de João Miguel.
Não se deve, só por isso, ignorar a composição de Fabiula Nascimento. Vê-la comer no filme é, desde logo, um prazer.
Não se reduzindo às suas duas satisfações - sexo e comida - a personagem de Íria é a expressão mais forte da fisicalidade dos prazeres e da sua estreita relação.
Nesse aspecto o realizador faz lembrar o que Peter Greenway fez com The Cook the Thief His Wife & Her Lover, uma composição sobretudo plástica - mas, em última análise, apontada a todos os sentidos - da luxúria e da gula. E imanesamente sedutora, sem dúvida.
Marcos Jorge alivia a bestialidade orgásmica de, por exemplo, comer e foder ao mesmo tempo com um pouco de humor que nada tem de rasteiro.
Sem dúvida que o domínio dos tempos narrativos e dos tempos de execução são uma das grandes valias do realizador e que muito bem servem o filme.


O filme que retrata o prazer culinário como motor das duas emoções essenciais que radicalizam o mundo, o amor e o ódio, a submissão e o poder.
A lamentável personagem de Raimundo desabrocha e liberta-se com a descoberta do seu talento para cozinheiro.
Aquilo de que ele é será capaz no final desse renascimento é o que o filme tem para contar e o que o filme tem para nos surpreender.
Dos pecados capitais nascem grandes histórias prontas para nos revelarem do mundo o prazer e a loucura.
Estômago diz-nos, mais precisamente, que da Luxúria à Raiva, começa tudo pelo prazer da Gula.



2 comentários: