segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Entrevista a Philippe Le Guay, realizador do filme "Os Encantos do 6º Andar"

Logo depois da projecção de Os Encantos do 6.º Andar  tive a oportunidade de falar com Philippe Le Guay.
Uma projecção que terminou com uma longa salva de palmas e que foi pautada por muitas gargalhadas e que, por isso, muito deve ter agradado ao realizador que mostrou uma enorme simpatia.
Desde logo quando abriu a introdução ao seu filme com uma pequena brincadeira com o público que o esperava, dizendo que poderia fazer uma sequela a este filme passado na década seguinte, desta vez com as emigrantes portuguesas que acabaram a trabalhar em França depois das empregadas espanholas do filme terem regressado ao seu país.
Tendo sido, verdadeiramente, uma conversa de sofá, foi muito agradável mas também breve pois o realizador estava de partida. Deixo-vos o essencial do que foi abordado.


Acabou de ter uma sala cheia com uma multidão que se equiparou à da sessão de The Artist. E a sessão onde passou Ni à vendre, ni à louer esteve também muito cheia, embora não a abarrotar como essas duas.
Sente que há um público sedento de uma sensibilidade cómica francesa, mais aberta a um público "intermédio", uma sensibilidade que combine a cinefilia com o sentimento popular?
Bem, há muitas realidades cómicas. Do trash às comédias de Judd Apatow, todas elas têm um público certo.
Agora aquilo que eleva uma comédia é o tom e a capacidade de colocar em equilíbrio o humor e o carinho.
E, para mim, isso consegue-se com personagens tocantes, com algumas fraquezas, sem consciência de si próprias.
Por isso cuido das personagens e talvez seja isso que o público reconhece, identificando-se e divertindo-se com elas.

Apesar de tratar de um misto de confronto e encontro de classes, o filme privilegia o humor e não a crítica social. Ainda que se note nas frinchas da história as referências reais da época à ideologia sobre de Gaulle e às consequências dos actos de Franco, mas isso surge mais como contextualização do que comentário. Porquê escapar a essa hipótese reflexiva?
Tratou-se do meu primeiro filme de época e foi importante traduzi-la através de algo mais do que os cenários, o guarda-roupa. São precisos elementos para lá dos visuais para dar noção credível de se estar numa outra época.
Tive um trabalho de precisão para mostrar o que se passava naquela época. Mas, em geral, não era intenção do filme focar-se na política da época de forma muito directa, daí que a comédia seja mais substancial.

Na mesma linha de pensamento, acabou por me parecer que a realidade da burguesia é menos importante no filme do que este homem em particular que é, afinal, a personagem central mais do que as empregadas com quem convive.
Bem, há um inevitável comentário à burguesia francesa, afinal de contas, a personagem central não tem orgulho em ser burgês. Mas isso vem do facto de ele não saber quem é, de viver separado dos seus sentimentos.
Ele é uma concha vazia ou, pelo menos, que acredita estar vazia até que sente a centelha de vida das empregadas que agitam a sua consciência do mundo. Elas colocam em marcha um movimento de abertura ao que ele é lá no fundo.
Certamente que me interessou mais a evolução do personagem mas foi essencial colocá-la a partir de um ponto de existência burguês visto que a burguesia é um isolamento numa posição pessoal muito rígida.
A burguesia é uma separação do ambiente que rodeia uma pessoa, uma falta de consciência para o mundo.

Concordaria então que o filme está menos ligado à ferocidade anti-burguesa de La Cérémonie de Chabrol e mais à mensagem positiva para a vida das alegres comédias americanas de décadas passadas?
Acha que num tempo como este, em que o confronto social está de novo na ordem do dia e invade todos os outros meios de comunicação, o cinema precisa de voltar a ter também um objectivo escapista?
Já houve muitas reacções de pessoas que me abordaram dizendo que neste filme sentem algo semelhante ao que se passa no tempo actual.
E eu consigo ver que, de certa forma, há um comentário aos dias de hoje pelo paralelo com a história dos anos 1960.
Não chamaria, por isso, a este filme escapista, mas acredito que é um filme positivo que se serve da comédia para abafar certos sentimentos negativos que têm sido sentidos na sociedade francesa, também à conta da crise.
O objectivo do filme - e penso que isso também fala aos dias correntes - era contestar os sentimentos de tristeza e raiva que surgem ciclicamente contra os estrangeiros.
Queria dar uma visão positiva dos emigrantes, daquilo que contribuem para a mudança da vida de um país.

A escolha de duas actrizes de Almodóvar foi para dar um colorido espanhol mais reconhecível às empregadas do seu filme?
Bem, é inevitável essa pergunta pela escolha de Carmen Maura e Lola Dueñas, mas a verdade é que Carmen esteve muitos anos sem trabalhar com Almodóvar.
Escolhi-as porque têm rostos muito interessantes que ajudam a construir as personagens logo a partir daí.
Até aconteceu que a Rossy de Palma participou num casting para uma das personagens mas não a escolhi porque ela tem uma cara com uma personalidade ainda mais forte e mais associada ao realizador.

As suas personagens espanholas acabam por ser funcionais a uma ideia de "felicidade apesar das dificuldades" que quer transmitir. É pela escolha dessas actrizes com forte personalidade que as ajuda a escapar a serem um estereótipo?
Os actores dão complexidade, além de corpo, às personagens.
Há certamente uma função nas personagens e a expectativa é a de que os actores ajudem a que a personagem escape dessa função e seja algo mais do que isso.
Aí entra o diálogo entre os actores e o realizador. Os actores trazem o charme, a garra...
Isso é algo que não se decide, mas é aquilo que cria uma unicidade doa vários momentos que a personagem tem ao longo do filme.
O trabalho do realizador é estar atento ao actor e dar-lhe o abrigo e o carinho para mostrar o seu melhor.
Kiberlain, por exemplo, no papel é uma mulher frustada mas o facto de saber que ela é uma miúda do campo que veio para a cidade ajudou-a a compôr uma mulher mais complexa, com sofrimentos e dúvidas individuais que não se limitam à frustação do casamento.

São, então, os detalhes que ajudam a compôr as personagens. As pequenas referências que todas elas têm ao seu passado, sem fazerem parte da narrativa do filme acabam por se tornar substanciais ao trabalho dos actores?
Sim, sem dúvida alguma. Desde logo o Jean-Louis Joubert é um homem que nunca foi amado nem pelo pai nem pela mãe. Que, por isso, é também muito rígido emocionalmente.
Daí vem-lhe a história de amor com aquele grupo de mulheres, com a liberdade que têm. Não se trata apenas de Maria e de uma história de desejo.
Quis evitar o cliché da história de amor e nesse aspecto são os detalhes que ajudam a perceber que este homem se apaixona por uma vida onde todos cuidam um dos outros.
Ele não sabe que tem a capacidade de sentir atracção - por aquele tipo de vida e por uma mulher. Precisa da presença da criada para o perceber.
E mesmo assim recusa aceitar isso porque pensa conhecer o seu lugar na hierarquia social.
Com isso se faz o humor do filme, porque o público sabe o que se está a passar e o que ele está a sentir mas a personagem não.
É uma deliciosa ironia que continua a resultar com o público, a apelar-lhe às emoções!

Vimos Fabrice Luchini como um burguês nos anos 1970 em Potiche. Voltou agora a convocá-lo para fazer uma personagem semelhante nos anos 1960.
Não tem medo de estar a limitar o actor ou sente que de certa forma desta vez o salva porque ele se transforma no final?
Na verdade escolhi-o por ser diferente. Ele vem de uma família italiana, é neto de um emigrante e por isso tem mais interesse vê-lo interpretar uma figura muito mais severa com essa realidade.
Aliás, há uma grande ironia no facto de ambos os membros do casal [Nota: o realizador referia-se a Sandrine Kiberlain] serem descendentes de emigrantes, o que adicionava um excelente significado ao objectivo do filme.
O actor é muito popular e, por isso, é até um "erro de casting" para a personagem que causa algum desagrado.
E este papel é muito diferente do de Potiche pois ele não escolheu ser burguês, é uma vítima do contexto em que cresceu e em que esperam que ele viva. As pessoas que conhecem o trabalho dele até estão surpresas por o ver num papel mais gentil.
Além disso tudo, Potiche ainda não tinha saído quando eu o chamei para o filme, portanto não sabia que iria acontecer esta semelhança de papéis.



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