domingo, 15 de abril de 2012

Ruggine, por Carlos Antunes


Título original: Ruggine
Realização: Daniele Gaglianone
Argumento: Daniele Gaglianone, Giaime Alonge e Alessandro Scippa
Elenco: Filippo Timi, Stefano Accorsi, Valerio Mastandrea e Valeria Solarino

Os que se preparem para ver este filme, na sua maioria, já terão lido a sinopse que o site do festival disponibiliza.
Não era o meu caso que segui para a sessão atraído por uma única e fortíssima razão, o reencontro com Filippo Timi, fabuloso actor de um fabuloso filme chamado Vincere.
Aliás, acredito cada vez mais em entrar na sala de cinema num estado o mais perto da inocência possível para melhor me relacionar com o filme, deixando-me mover por razões insondáveis e um amor ao cinema que nem delas precisa.
Por isso, no momento em que a direcção do Festival fez a apresentação do filme ressenti-me que tivessem tanta determinação em convencer o público que enchia o Nimas da qualidade da interpretação do actor que aqui fazia mais um vilão e da visão com que o realizador combinava a fábula ao tratamento de um tema tão dolorosamente realista como é a pedofilia.
Esses são os aspectos que cada um está ali para descobrir por si próprio, esse deve ser o direito que o público tem de julgar a moralidade de uma personagem ou entender um filme de acordo com intenções melhor ou pior concretizadas.
No meu caso a revelação da temática  custou-me que, durante o filme, tivesse de apreciar à distância da revisão intelectual um efeito sublime que o filme deveria alcançar a um nível emocional.
O filme atira-se ao espectador com a assombração ambiente que se espera de um filme de terror. O primeiro acto que vemos, que faz temer o que está a chegar ao seio daquele mundo da infância alegre entre as dificuldades, é um acto de bondade. A assistência a uma bicicleta estragada e uma boleia até casa.
Está tudo no som, mas também na maneira como a figura adulta se move com extremo cuidado como se a sua presença se fosse dissipando contra o cenário. Não lhe vemos logo a cara, por isso, filmado que é à altura dos olhos de uma criança - e logo a sua mão parece monstruosa - ou desfocado contra uma luz inclemente, até que descobrimos que ele é o médico e aí deveríamos sentir-nos na dúvida sobre se afinal poderíamos confiar neste homem (uma razão mais para que não nos tivessem dito que o actor fazia de vilão...).
Timi não interpreta um vilão, exagera a sua figura até ser um verdadeiro monstro - no final do filme vemo-lo bufar - e é pela visão do seu desvairio ainda agarrado à realidade do seu papel naquela comunidade que acreditamos no tom do filme, o de mito a servir de aviso que o aproxima do intuito original dos contos que os irmãos Grimm recolhiam.
Essa interpretação conta mais do que a metáfora (se assim se pode chamar visto que não prima pela subtileza) do dragão negro da história que uma das crianças conta, em adulto, ao seu filho ou do nome de "castelo" que recebe aquela estrutura de sucata onde os miúdos brincam.
A interpretação mantém a ligação interna da realização ambivalente que mostra traços do Neorrealismo tal como acabaria por chegar às mãos de Ettore Scola e de uma exploração visual "artística" que sugere uma ambiência mágica. A combinação é mais eficaz logo ao início numa cena em que o pó dos escombros atravessa um raio de luz e se assemelha ao que uma criança julgaria ser um pó feeérico.
A realização chega a ser extraordinária em ambos os aspectos, sem que isso evite a impossibilidade de unir todos os fios narrativos.Dividido entre os anos 1970 e o presente daquelas crianças, a história não tem precisão no que quer dizer sobre o resultado do encontro com o "Monstro" para as pessoas que têm de continuar a habitar um mundo que se tornou todo ele num perigoso castelo.
As cenas passadas no presente, embora adivinhemos naturalmente que se referem aos três jovens protagonistas da história, parecem ser parte de outro filme que não este e que só no final se tornam eloquentes sobre a solidão desamparada daqueles que perderam a inocência demasiado cedo mas também - ou sobretudo - o pequeno medo com que a maioria sobrevive dia a dia.
Nessa altura aqueles adultos revelam o que, na verdade, descobriram enquanto crianças: que serão poucos os dispostos a aceitar aquilo que eles descobrem.
Afinal à medida que, como crianças, viam o comportamento absurdo e desviante do médico, os adultos reverenciavam-no mesmo contra todas as evidências de que ele não merecia tal benefício.
Daniele Gaglianone ainda demonstra esse fechar de olhos para a realidade mais nociva pontuando o filme com brevíssimos interlúdios a negro onde só o som subsiste. São, a par da repetição de cenas de pontos de vista diferentes, um dos sinais de talento e de vontade para a experimentação do realizador que beneficiaria de ter uma visão mais bem talhada para definir o seu trabalho neste filme.
A sensação com que se fica é a de que essa visão foi prejudicada por uma passagem de livro a filme que não soube abandonar parte do que será muito material original.


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