domingo, 17 de fevereiro de 2013

Bestas do Sul Selvagem, por Tiago Ramos


Título original: Beasts of the Southern Wild (2012)
Realização: Benh Zeitlin
Elenco: Quvenzhané Wallis e Dwight Henry

O grande filme que há em Bestas do Sul Selvagem é também uma revisitação de vários outros. Não que seja directamente inspirado neles (a fonte maior é a peça de teatro de Lucy Alibar, que a própria adapta ao cinema), mas nasce e vive das suas influências - ou pelo menos permite-se a comparações a outras tendências do cinema. As maiores fazem-se directamente de títulos como Winter's Bone (2010) e The Tree of Life (2011). Ou seja, um misto entre a realidade de uma América rural desinspirada, com uma filosofia de vida (que parte do particular para o geral) positiva e atenta ao meio que o rodeia, embrulhada num original e curioso realismo mágico. Realismo mágico esse que é mais frequentemente visível na literatura, mas que começa também nos últimos anos a evidenciar-se no cinema e que terá muito provavelmente em Bestas do Sul Selvagem um dos seus mais belos produtos.

Um filme que parte de uma comunidade isolada por uma espécie de via sacra, consequência da desolação provocada pelas chuvas e força da Natureza (que para muitos é uma evocação directa ao pós-Katrina, mas que tem uma abrangência bem maior), para estabelecer uma espécie de caminho do crescimento, da vida em sociedade e em harmonia com o meio. Fá-lo pela força da sua narrativa esquemática e sobretudo, atmosférica, que cresce em harmonia com o trabalho de realização de Benh Zeitlin. De câmara ao ombro, próximo das personagens, filmado em 16 mm e com um trabalho de fotografia notável de Ben Richardson que soube beneficiar-se das potencialidades da película para transmitir essa atmosfera fantástica que a narrativa imprime. O mesmo com a banda sonora criada pelo próprio realizador (em parceria com Dan Romer) e com a mesma motivação de um autor, com composições belíssimas, enérgicas e que reflectem o sentimento de fantasia da trama. E mesmo quando essa estética, entre o realismo, o fantástico e o espírito independente norte-americano (tão evidente no cinema de Kelly Reichardt, por exemplo) se torna agressiva, dada a sua omnipresença, não chega a provocar desilusão no espectador, dado ao ímpeto arrebatador com que o faz.

Essa energia impressa pelo realizador não estaria porém completa, sem a presença de Quvenzhané Wallis e Dwight Henry. Presenças curiosas, não fossem estes actores amadores, sem qualquer experiência e, no caso da primeira, uma criança que, aos seus sete anos de idade, tem uma energia e coragem incríveis. Os seus desempenhos misturam a agressividade e violência, com a dureza das suas vivências a notar-se, com doçura e humildade. São eles que a cada momento arrebatam o espectador por esta viagem numa jangada improvisada, entre momentos emocionalmente devastadores, em meio a uma simplicidade incrivelmente avassaladora, entre uma comunidade devastada e um olhar infantil, místico ou mágico, repleto de criaturas pré-históricas e figuras folclóricas. Uma história repleta de poesia e magia, como de brutalidade e visceralidade. Uma história que facilmente conduzirá a apreciações de teor moralista (há aqui alusões políticas e ambientais, inevitáveis de se fazer, é verdade e importantes demais para serem desconsideradas), mas que talvez consiga ser mais que isso ou melhor, viver para além disso. Sim, claro que pode ser um retrato antropológico da sociedade do sul dos Estados Unidos no pós-Katrina ou de toda a América (talvez o Mundo) pós-prosperidade e durante um período de recessão. Sim, é isso e também um modo de dizer que a preservação é necessária, um conselho ambientalista, um modo de vida. Mas pode ser também (dependendo da entrega de cada espectador) uma vida encapsulada num período específico e pelo olhar da criança, egoísta claro, mas genuíno e decidido. Em Bestas do Sul Selvagem cria-se um mito pela desconstrução de vários, vive-se uma energia selvagem, aproveita-se a liberdade e a existência, pela originalidade e força das imagens. Isto sem cinismos e se o deixarmos.


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