terça-feira, 21 de maio de 2013

The Bookseller of Belfast, por Carlos Antunes


Título original: Le libraire de Belfast
Realização: Alessandra Celesia

A expressão mais importante a reter do título é "de Belfast", porque o filme não é exclusivamente sobre John Clancy (na imagem abaixo), figura extraordinária mas não isolada.
Ele, o livreiro do título, é como o quente foco para onde todas as outras personagens são atraídas. Mas o filme sabe desprender-se dele em direcção a essas outras personagens que o encaminham depois em direcção à essência da cidade.
Uma cidade que se tornou sinónimo automático de violência na mente da maioria dos que lá não pertencem mas que revela um caloroso sentido de comunidade.
Esse sentido de comunidade confere à cidade um belo sentimento interno de contradição no qual não se lê a relação de causa e efeito. O recolhimento - e não fechamento, atenção - na comunidade acontece naturalmente enquanto à sua volta a violência a encobre para quem olha para Belfast.
Talvez por isso seja ainda mais extraordinário que o filme nunca vá filmar a cidade e fale tanto dela. Filmando o ângulo que nunca poderíamos ter visto e deixando o restante apenas penetrar brevemente para que recuperemos as memórias que já temos: vemos John passar pelo perímetro policial em torno de mais uma ameaça de atentado, mas no seu bairro não há cicatrizes de violência.
Alessandra Celesia fala da cidade escondida encontrando personagens que são como ela, maravilhas escondidas debaixo de um visual de julgamento fácil.
O rapper cheio de cicatrizes - lá está a memória da violência, embora nunca diga como ficou com as cicatrizes - que se treina duramente e escreve letras de reivindicação social, mas depois olha para Belfast com afecto. A empregada de café que até tem um disco gravado mas só recebe atenção ao concorrer a um concurso onde tem de se exibir a cantar Dolly Parton. Um punk que, de auscultadores nos ouvidos, se comove com ópera.
E, claro, um livreiro que por mais livros que tenha lido ao longo da vida continua a regressar ao Bambi que o marcou desde novo.
Enquanto leitor tenho até alguma pena de não ter visto a totalidade do filme dedicado a ele e aos livros que procura, repara, partilha e guarda. Creio que só isso teria sido um deslumbre mesmo para quem não tem uma relação com os livros.
Mas este livreiro dá de si aos outros para lhes fazer sentir que merecem receber a estima de alguém, que merecem pertencer a uma sociedade de afectos.
Não se trata apenas dos gestos casuais que têm um efeito de grandeza quando a câmara os apanha e a montagem os exibe para o público.
Não se trata apenas das lições de vida que partilha com o rapper sobre como os jovens estudantes vinham muitos anos depois pagar os livros que os deixara levar sem pagar; nem do conforto que dá à cantora que não acredita no seu talento e se obriga àqueles concursos; nem dos livros que empresta para levar o punk (irmão do rapper, já agora) a começar a ler e a descobrir o quanto pode, assim, descobrir sobre o Império Romano.
Trata-se da simplicidade com que telefona apenas para deixar o recado de que se lembra do livro que lhe pediram e que assim que o encontrar o enviará. Dizer a alguém que, mesmo através da mais corriqueira situação, é lembrado por alguém.
Um homem que, pelo seu trabalho de paixão pelos livros, aprendeu como cuidar das pessoas. E agora, mesmo sem livraria - que ardeu numa noite de outrora, não se fica a saber como, mas levanta-se a suspeita - , continua a cuidar de uns e de outros recolhendo-os à sua volta enquanto houver espaço disponível na sua casa e no seu coração.
O livreiro John Clancy com os inesperados amigos que o rodeiam encerram do lado de fora do seu retrato qualquer sentimento que não seja o fascínio por uma cidade que os possa ter moldado. Depois do filme, sentimo-nos todos como sendo "de Belfast".



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