sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

12 Anos Escravo, por Tiago Ramos


Título original: 12 Years A Slave (2013)
Realização: Steve McQueen

Quando ainda há bem pouco tempo se falava de Lincoln e Django Unchained como dois importantes retratos (embora um mais focado que o outro) da escravidão nos Estados Unidos, talvez se estivesse longe de imaginar o portento que chegaria quase um ano mais tarde. 12 Years A Slave está longe do formalismo do filme de Steven Spielberg ou ainda mais da piada do filme de Quentin Tarantino. Aqui não há margem para concessões: o tema é ultra-sério, a dor é real, o que vamos sentir é devastador. Logo o plano inicial revela: não há dúvidas, a escravidão existe. A câmara move-se com a subtileza e virtuosismo suficientes para nos surpreendermos com articulação impressionante entre as pretensões artísticas de Steve McQueen, a forma como compõe a imagem e a forma como transmite a emoção das personagens. É a poesia da imagem que torna tudo ainda mais devastador: a emoção é real, como também o é a dor.

Tal como em Hunger e Shame, também 12 Years A Slave retrata a força de um corpo como prisão. É no corpo daquele homem, Solomon Northup, que se vai sentir a imensidão esmagadora do mal que o homem provoca a outros. É também no corpo daquele homem e sobretudo no soberbo desempenho de Chiwetel Ejiofor que vamos perceber que há mais aqui do que dor e agonia, que há mais do aquelas aquelas espantosas e horrendas cenas de castigo físico - onde a dor se faz anunciar, se faz sentir e onde perdura. Há no olhar daquele actor a força da submissão e da injustiça, o poder de estilhaçar o coração do espectador e de proporcionar estupefacção e descrença no Homem enquanto ser social. Há mais ali - e também na intenção do cineasta - do que a vontade de querer retratar o atrozes actos cometidos contra a raça negra nos Estados Unidos. Não é uma intenção meramente histórica, há algo muito mais profundo do que a mera revelação de um sistema moralmente corrompido, da denúncia do sangue derramado, da carne infligida. Steve McQueen não traz a questão da raça à tona, não é uma questão de racismo, é uma questão de maldade.

McQueen melhora a sua destreza por conseguir utilizar (ainda melhor) os recursos técnicos que tem à sua disposição - aqui à escala de um orçamento maior. Fá-lo por potenciar a intensidade de cada cena, não só pelo olhar humano que dá à sua lente, mas por permitir que as componentes técnicas nunca se sobreponham ao que pretende, mas sim que complementem. Isso acontece por intermédio da montagem e da justaposição constante de eventos  - imagem e som - mesmo que divergentes. Acontece pelo modo como permite que a banda sonora de Hans Zimmer seja um prolongamento do sentimento dos protagonistas, pela forma como dá espaço para escutar o vento nos campos de algodão, para ouvir as vergastadas no ar, as chibatadas na carne, o som da dor. Acontece pelo modo como permite que a direcção de fotografia de Sean Bobbitt seja tão infernal e horrenda (pelos eventos que revela), como dotada de uma rara beleza. 

E se Chiwetel Ejiofor demonstra um brilhantismo praticamente inigualável, não há que esquecer todo o excelente elenco - um dos melhores castings dos últimos anos. Lupita Nyong'o à cabeça, essa estonteante descoberta, que só uma única cena (momento inevitavelmente devastador em que faz um pedido a Solomon) consegue não deixar margem a mais ninguém para duvidar do seu talento. Uma interpretação não só física - permanecerá na memória por muito tempo a forma como cruel como é retratada - mas também profundamente desesperançada. Paul Dano (a provar que é um dos mais subvalorizados actores de sempre), Adepero Oduye (aquele choro é difícil de esquecer), Michael Fassbender (assustadoramente real) e Sarah Paulson (notável e cínica surpresa) complementam ainda o rol de talento que é esbanjado - é a palavra - à frente da câmara.

12 Anos Escravo permanecerá na História. Não é só um filme sobre a incrível e desconcertante jornada de um homem. É a história da injustiça e não só a demonstração do racismo e da escravidão. É a história da brutalidade humana, mas também a forma como a sociedade aceita como correcto aquilo que lhes é imposto, a história de como a sociedade é subversiva, como o Homem é manipulável. É uma poderosa contribuição para nós espectadores e para a Humanidade: é esmagador.

Crítica possível através de um screener gentilmente cedido pela Fox Searchlight Pictures.

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