domingo, 22 de dezembro de 2013

A Vida de Adèle: Capítulos 1 e 2, por Tiago Ramos


Título original: La vie d'Adèle: Chapitres 1 et 2 (2013)
Realização: Abdellatif Kechiche

Abdellatif Kechiche filma as suas personagens como uma proximidade daquilo que conhecemos como realidade. Uma jovem adolescente sai de casa, gorro na cabeça, estrada a baixo, corre para apanhar o autocarro que a levará em direcção à escola, o cabelo desgrenhado, as faces coradas. "Je suis femme"; lê-se La vie de Marianne, de Marivaux. Está dado o mote. Adèle não é ainda uma mulher, mas vai crescer sob o nosso olhar. A câmara segue-a, vemo-la a dormir, as suas faces a corar, o seu cabelo desgrenhado (filmado como uma personagem), a comer bolonhesa de forma gulosa, a gordura nos lábios, a lamber os dedos. Criança ainda, cora quando se fala em rapazes, come chocolates enquanto chora, é tímida, frequentemente constrangida. A verdadeira vida de Adèle começa aqui, connosco a sermos testemunhas do seu crescimento, companheiros da sua vida, frustrações, alegrias e descobertas. Adèle descobre a sua sexualidade, tentativa e erro, segue a ordem natural da descoberta, descobre-se a si mesma e nós espectadores descobrimo-la também.

O azul predomina desde o início: nas paredes do quarto, nos lençóis, na camisola e nos brincos que usa. A cor que faz parte da vida de Adèle e aquela que se descobre ser a mais quente. Não é de admirar então que seja essa cor que a fará virar a cabeça, apaixonar-se, descobrir-se, crescer e viver. O realizador sempre com planos apertados, aproximados, deixa-nos sentir a pele das protagonistas - assombrosas nas suas criações, porque são verdade, são reais, são genuínas. São nossas e aprisionam-nos, fazem-nos sentir o que lhes passa pelo olhar. Sobretudo Adèle Exarchopoulos, descoberta extraordinária, capaz de nos fazer corar com ela, de chorar connosco, de nos hipnotizar com os cabelos ao vento, com a luz a bater-lhe no rosto. Capaz de conter em si todas as emoções e sensações do mundo. De as fazer transparecer, de uma forma raras vezes vista no cinema. Nunca somos voyeurs forçados daquela vida, da sua vida. Porque aquilo que Kechiche e as actrizes fazem é tornar-nos parte daquela vida, é sentirmos o mesmo, é querermos comer aquela bolonhesa e sujarmos a boca, comer um doner kebab de bochechas cheias. É sentirmos aquele amor, aquele sexo, a união daqueles corpos. Aquele sexo, aquelas longas cenas - belamente filmadas, diga-se - são na verdade muito íntimas, muito intensas. Mas não são mais íntimas que assistirmos a uma ruptura, a uma discussão, ao seu sono, à forma como sorve uma ostra. Não são mais íntimas que a vida que se nos interioriza como nossa. São orgânicas, são parte da vida. Não é só o sexo que é explícito, são também os sentimentos que Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux encerram nos seus rostos e corpos.

A Vida de Adèle é uma história de amor. É uma história de vida. Uma vida que podia ser nossa, que se torna nossa e que tem a extraordinária capacidade de fazer o espectador apaixonar-se por uma personagem que não é real. Mas que se torna. É por isso que a sua dança na festa de aniversário, aos dezoito anos, ainda ecoará na nossa cabeça: «I follow you deep sea baby. I follow, I follow you». E nós ficamos ali a querer seguir aquela vida, aquela Adèle que queremos que seja também nossa, mas que se afasta lentamente, com o seu vestido, de cor azul, e vemo-la partir, ao longe. 


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1 comentário:

  1. É engraçado que antes de ler esta crítica tinha-me estado a lembrar precisamente da cena da festa de aniversário.

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