quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Lucy, por Carlos Antunes



Título original: Lucy
Realização: Luc Besson
Argumento: Luc Besson
Elenco: Scarlett Johansson, Morgan Freeman, Min-sik Choi


A meio caminho entre Crank e Transcendence, Lucy é melhor do que ambos mas pior do que se exigia.
A classe - a maior parte dela concentrada em Scarlett Johansson, mas sobre ela há que escrever mais adiante e em detalhe - não permite com o mero entretenimento cinético (e descabelado) do filme protagonizado por Jason Statham.
Já o apurado sentido de ritmo - sinal de despretensiosismo apesar de tudo - distancia-se do aborrecidmento (pseudo-)filosófico do filme com Johnny Depp que vimos ainda este ano.
Daí a identidade desregulada de Lucy que sabe ser económico com o tempo mas que não se estrutura devidamente para a mensagem final que transmite.
Identidade pode parecer a palavra errada num filme que gera uma lista de comparações - mais uma com Limitless, por exemplo - mas não deixa de a ter embora a simpatia para com ela venha a variar muito com o grau de tolerância para o facto de um filme de acção se apresentar com um mote para a vida moderna.
Trata-se de apresentar uma heroína com mais do que gosto pela violência e vontade de sobreviver. Esta sacrifica-se pelos outros humanos apesar de procurar uma concretização pessoal que tem, do mesmo modo, que ver com vingança.
Menos razoável é fazê-lo usando a Neurociência, a Teoria da Evolução e a Física Quântica sem a devida ponderação.
A utilização dessas áreas de conhecimento como matéria de pompa para um entretenimento de execução apurada compromete a relação do público com o filme.
As liberdades de imaginação que redundam em incorrecções científicas são óbvias e, como tal, devem estar envolvidas por um mistério que se sabe ser o grau de incerteza que transforma a Ciência em especulação. Ser, de forma clara, Ficção Científica em vez de tentar criar uma Factualidade Científica duvidosa, para dizer o mínimo.
O salto em direcção ao futuro deve assumir que falhará para que o filme de acção sobreviva para lá do que tenta estabelecer como hipótese sem ressentimentos de quem se confronta com ele.
Neste caso sobreviverá porque, apesar de todos esses erros do conhecimento, o cerne do filme de acção carrega um visual de qualidade, incluindo uma das cenas de perseguição automóvel melhor executadas de há muitos anos a esta parte.
Como também sobreviverá porque conta com Scarlett Johansson a agarrá-lo ao plano da identificação pessoal com a sua interpretação que traça uma personagem num momento de evolução acelerada.
Todo o potencial de uma nova heroína de acção de sucesso passa pelo seu papel dessexuado mas não sem uma componente de afirmção feminina, por mais difícil que isso possa parecer de concretizar em simultâneo.
O distanciamento emocional que Johansson dá à sua personagem - com breves mas intensificados momentos de descarga - faz crer numa personagem apostada na eficácia (por culpa do tempo contado) com um difícil mas progressivo controlo do racciocínio sobre as emoções.
A composição faz pensar num intencional reaproveitamento das qualidades que a actriz emprestou a duas das suas personagens, Natasha Romanoff e a criatura sem nome de Under the Skin, em personagens "intermédias" e como referência mais permanente da intensidade tanto da presença como do mistério.
A componente física da sua interpretação como suporte de filmes de maior público mas a mesma estranheza no confronto com o mundo à sua volta. Ela parece não querer que se esqueça a força do trabalho que fez para Jonathan Glazer.
A composição leva mesmo pensar numa revisitação de Nikita por parte do realizador, num mundo onde a mulher já não pode ser tão frágil nem alguém aceitar a sua condição sem a questionar por força da sua identidade.
Luc Besson é o maior cultista do sentido de espectáculo do cinema à americana que, provavelmente, nem Hollywood conhece mais na redução que fez aos blockbusters.
Mas é também um realizador de talento - em muito obras por aproveitar - que no início da carreira prometia reivindicar o título de autor dentro do "cinema para o público".
Vemos aqui que, por vezes, ainda resvala para essa área de inventividade pessoal e inconformismo autoral, que apenas o seu papel como produtor contraria: os seus filmes têm de cumprir com as mesmas obrigações comerciais dos restantes realizadores que patrocina.
Aqueles exercícios de montagem em que imagens da "vida animal" ilustram o discurso de Morgan Freeman com indevida (para um filme de acção) ironia são prova disso e por não se repetirem mais adiante no filme criam uma sensação de incompletude.
A atitude revelada nessa montagem era a que deveria acompanhar todo o filme transmitindo a mensagem de que há que ter determinação em fazer algo da própria vida - considerando o progresso que temos em relação a outras espécies - sem que Lucy tivesse de o declarar no final.
Defeitos e virtudes que se equilibram - sem se anular! - num objecto que mantém uma coagente singularidade.




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