quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Lion - A Longa Estrada Para Casa, por Carlos Antunes



Título original: Lion
Realização: Garth Davis
Argumento: Luke Davies
Elenco: Dev Patel, Nicole Kidman, Rooney MaraSunny Pawar


Lembre-se The Barefoot Contessa de Joseph L. Mankiewicz para falar de Lion: um guião tem de fazer sentido, a vida não.
Este sentido não trata apenas da coerência do que se passa mas da relevância dramática do que se passa e da capacidade do argumento de envolver o público naquilo que narra.
Os traços gerais das duas grandes componentes da história parecem ser aquilo que Lion precisava para que o seu guião fizesse sentido.
Por um lado a história de há vinte anos atrás quando um menino se perde do irmão e fica preso num comboio que viaja 1600 km até Calcutá onde ele acabará na rua e, depois, num orfanato antes de ser adoptado por uma família da Nova Zelândia.
Por outro a história de como em 2008 as suas memórias da família que perdeu na Índia se tornam mais intensas e, com o nascimento da ferramenta Google Maps, o fazem procurar as suas origens de forma tão obsessiva que começa a destruir os laços emocionais que construiu.
O filme conta a primeira metade da história de forma directa, sem tentar dar-lhe uma sofisticação que as dificuldades de vida de uma criança não precisa.
Como esses momentos se julgam a preparação da história mais complexa que estará para vir depois - ideia que o subtítulo português reforça - o seu esquematismo perdoa-se.
Esta parte da história, com o seu realismo que infelizmente ainda é um cliché, captura a atenção enquanto o público ainda está disponível para fazer o investimento emocional, no que é incentivado pela carismática presença de Sunny Pawar, uma descoberta que valerá a pena ver no cinema mais vezes, sobretudo se lhe permitirem manter a naturalidade que fazer parte da sua actuação.
Quando o tempo salta para a imagem de um feliz surfista Neo-Zelandês, que só o tom de pele denuncia como tendo outras origens, não foi estabelecido um passado significativo para o personagem central para lá daquele episódio na Índia.
A partir daí era difícil que o filme se erguesse acima do resumo de uma história de vida certamente mais substancial e que aqui se vai resumir a "o que eu andei para cá chegar e agora o que eu vou andar para lá voltar".
O esquematismo narrativo mantém-se mas como a substância deixou se estar nas ocorrências que assolam Saroo para estar nos elementos dramáticos da sua vida, qualquer sombra de consistência se esboroa.
Na tentativa vã de construir um personagem adulto com quem se conectar o filme atira com elementos dramáticos ao público com uma brusquidão que se torna absurda.
Não há lógica na maneira como as revelações são feitas e o público é deixado a adivinhar o que se terá passado até que novo efeito surpresa surja.
Isso é péssimo quando o filme tem de estabelecer uma identidade familiar pela qual Saroo tenha sentimentos contraditórios que o façam hesitar no momento em que tem de optar entre a família que outrora perdeu e a que agora se arrisca a alienar.
Primeiro sabe-se que Saroo tem uma desavença com o seu irmão (igualmente Indiano e adoptado), depois que a mãe sofre de prolongada depressão por causa desse irmão muitas vezes desaparecido, até que por fim surge a informação de que são as drogas que minam a harmonia.
Esta linha dramática permanece no filme para que Nicole Kidman tenha direito a uma cena em que se mostra vulnerável e comovente mas pouco mais do que isso, para infortúnio de David Wenham e Divian Ladwa que poderiam ser substituídos por imagens de cartão de si próprios.
O foco deveria ir para a busca que Dev Patel faz pelo seu passado, acometido pela lembrança de um bolo frito que cobiçava em rapaz, e que encontra notáveis dificuldades nas poucas lembranças que ele tem e na imensidão de correspondências que com ela faz num país da dimensão da Índia.
Aqui se tem de retornar ao sentido que o guião deveria fazer e que, não acontecendo, corta os últimos fios que conectam espectador e filme.
O Saroo adulto parece não ter uma dose de lógica na sua abordagem à busca que tem de fazer. E isto apesar dos cálculos que executa e das linhas de mapa que traça.
Persistindo no seu isolamento emocional contra aqueles que o querem ajudar só se enrodilha na tarefa quase impossível.
Para, no instante em que ela se torna avassaladora, descobrir a resposta numa deambulação sem nexo pelos mapas da Google.
Admite-se que as coisas se passaram desta forma na história real, mas o filme faz com que pareça tudo um acto de providência. Um toque de magia quando tudo parece perdido.
Está assim validado os erros de comportamento de Saroo que atingiu o seu final feliz. Ainda para mais com a recompensa adicional do compromisso da personagem de Rooney Mara, a mesma que ele abandonou por estar obcecado com a sua busca.
Para fazer crer que Saroo estava destinado a ser bem sucedido o filme tinha de justificar esse mérito com algo mais do que o infortúnio de vinte anos antes.
Pela forma como Saroo desperdiça as excelentes oportunidades e o muito amor que recebe, ele deixa a sensação de merecer o preciso oposto.
Muitas sãos as opções erradas do argumento, que selecciona mal os elementos humanos essenciais à história e que tudo relata sem centelha de vida.
Garth Davis deveria ter sido capaz de fazer o resultado final superar esse problema de base, elevando o retrato que faz do seu protagonista.
Até terá almejado a tal mas a sua escolha visual de ter Dev Patel a olhar o horizonte e a ter visões do seu irmão há muito perdido é demasiado pobre, ainda que aconteça sob um excelente trabalho de fotografia de Greig Fraser.
O actor Inglês está comprometido com o papel, acredita nos feitos que o acaso colocou no percurso de vida do homem que emula.
Sem bases nas quais apoiar a qualidade e a intensidade que demonstra, o seu papel não ascende a um lugar de destaque que permita elogiá-lo com mais do que comedida sinceridade.
Não era uma "tarefa de leão" a equipa à sua volta fazer valer o drama natural do homem a quem dá corpo e comover quem visse o filme. Falhar em quase toda a linha é, por isso, uma sentença ainda mais grave.




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