sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Desafio Total, por Carlos Antunes


Título original: Total Recall
Realização: Len Wiseman
Argumento: Kurt Wimmer e Mark Bomback

A percepção da realidade é um tema em embrião em Total Recall que, à parte uma cena de diálogo sem nada de subtil quando o filme já vai (demasiado) longo, raramente é aflorado.
As questões pessoais que deveriam criar um drama pessoal em torno da incógnita identitária do Douglas Quail de Colin Farrell - um actor muito melhor do que este filme alguma vez mereceria - esfumam-se ao ritmo ilógico que o filme escolhe para si mesmo.
Desde aquela primeira cena de acção, visível no trailer e onde a lógica dos movimentos de câmara é descartada para dar lugar a um estilo que até os videojogos já não usam, o filme não volta a dar ao actor uma oportunidade de mostrar o quão expressivo pode ser.
A cada cena sucede-se, com uma violência desgastante, uma outra que serve apenas para glorificar os limites que a perícia dos técnicos de computadores já conseguem alcançar.
Seja em correrias pelos telhados ou em perseguições automóveis, o filme teima em fazer crer que domina a arte cinemática, muitas vezes em planos gerais que quase fazem desaparecer as figuras que deviam sobressair.
Mesmo assim não há plano que se demore o suficiente para que se aprecie o interessante design criado para as duas cidades do filme, embora não possa ser considerado original.
A influência de Blade Runner é inescapável - possivelmente, inescapável para a maioria da Ficção Científica desde que o filme foi lançado - do lado da Colónia, enquanto Londres passa por uma mescla do que The Fifth Element e I, Robot deixaram como lembrança.
Mas logo nessa Londres começa o declínio de coerência (visual, para já) do filme, um sintoma que se alastra por todos os seus elementos até que este termine.
Para uma cidade que permanece em grande parte inalterada em relação ao que é hoje, está iluminada por um belo sol apesar de por cima dela haver uma segunda cidade estrutura em várias camadas com uma quantidade incontável de estradas e blocos.
Mais tarde revela-se um grande falhanço de lógica que demonstra o quanto a coerência é pouco importante quando o objectivo a alcançar é meramente visual.
Quando o único meio de comunicação entre o Reino Unido e a Austrália (que não são antípodas, mas deixemos isso), um shuttle que atravessa o núcleo da Terra e cujos interiores foram pensados a partir de 2001: A Space Odyssey, se torna o palco da principal cena de acção do filme, quem a executou perde a noção física do que está a representar. Onde estaria localizada a "parte de cima" do mesmo entre o momento em que ele viaja e depois quando este emerge são dois dados que não batem certo e que fazem desconfiar do pouco investimento que houve na compreensão dos elementos de especulação científica aqui integrados.
Claro que, perante isto, interrogar-se sobre o porquê dos rebeldes nunca terem pensado em atacar aquele que é o único meio de viajar entre os dois pontos do globo, e que eles consideram como a causa da opressão exercida sobre a colónia, é um exercício inútil por parte do público.
Com toda a narrativa a ser muito denunciada, sobretudo quando tenta guardar segredos enquanto as personagens os "gritam" em todas as suas acções, o filme pouco mais é do que uma desculpa para a recriação visual de um realizador medíocre. Uma desculpa que vai longe demais até completar duas horas entorpecedoras.
E querendo ser tão diferente do filme de Paul Verhoeven (como do conto original de Philip K. Dick) não se compreendem as imitações - a prostituta de três mamas - ou as citações óbvias - o disfarce que servia a Schwarzenegger para entrar em Marte - que não farão nada pelos fãs que nunca viram o filme anterior e ainda menos pelo os que o viram e dificilmente apreciarão este.
Contra este somatório de erros nem uma boa cena, como o jogo de elevadores que usam todos os eixos cartesianos, vale para dar ao filme uma dignidade mínima. Quanto muito dá vontade de ir rever uma cena similar de uma verdadeira demonstração de perícia técnica que não deixa de ter uma história sólida e afectuosa: Monsters, Inc..


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