terça-feira, 30 de outubro de 2012

Three Sisters, por Carlos Antunes


Título original: San zimei
Realização: Bing Wang

A China discutida pelo mundo fora pela sua imposição económica é apenas uma referência longínqua na região onde permanece Ying Ying (à esquerda na imagem acima), a verdadeira protagonista do filme (que escolhe mal o seu título, apesar das relações que este convoca relativamente aos temas da peça de Tchékhov).
Essa China, império macro-económico cujo voraz impacto não pode ser travado, surge apenas como a ideia de uma vida melhor, referenciada referenciada como a cidade de onde o pai das três crianças surge apenas para voltar a partir com as mais novas (de forma a que não vivam sem uma figura parental - Ying Ying permanece com o avô).
A cidade é também o local de onde o pai regressa mais uma vez, perto do final, incapaz de se sustentar e acompanhado, curiosamente, por mais duas vidas.
Essa China poderosa está decidida a esquecer estas regiões que nunca conseguirão elevar-se aos patamares pretendidos para a imagem internacional do país e, em parte, os habitantes destas regiões estão decididos a serem esquecidos, em grande parte por causa das crianças que abundam aqui contra as regras restritivas do número de filhos.
Mas essa China não se importa de perpetuar os mesmos métodos impostos às regiões que não conhecem nem o capitalismo nem a modernidade, tornando as crianças em trabalhadores equiparados a quaisquer outros.
Ying Ying vive uma infância a que quase não se pode dar esse nome. Se faz os trabalhos de casa e lança-lhe com desprezo um "Outra vez a estudar?" e logo tem ela de ir tratar das cabras e ovelhas - e aqui o filme rima, tristemente, com Dusty Night no momento em que um pai diz ao filho que lhe basta ler umas linhas e que tem de aprender um ofício e não pode continuar a estudar.
O resto do tempo, quase sem excepção, o seu papel é o de senhora da casa. Ou, já com as irmãs longe, a de trabalhadora "no duro".
Ela, os primos e as restantes crianças da aldeia passam muito do seu tempo enchendo cestos com estrume e carregando-os às costas.
Só pelo meio dessa dureza roubam algum tempo para serem livres, para brincarem como crianças que mal se lembram que são num cenário extraordinário mas que se apaga aos olhos do público perante as condições miseráveis em que vivem.
Há um desalento emocional perante os piolhos que constantemente Ying Ying tem de catar às irmãs, pela sujidade permanente a que quase ninguém reage - fica a dúvida se é verdade que não tomavam banho desde que o pai partira - e pela maneira como vivem sem barreiras entre o humano e o animal, a tal ponto que o gado parece viver naquilo que é apenas mais uma divisão da casa.
Mesmo assim pelo meio de tão grande opressão há momentos de ternura entre irmãs que demonstram que um toque de inocência ainda foi salvaguardada e evitam a sensação de agonia.
Crê-se que é difícil que possa suceder num mundo em que a comida é contada e em que o afecto parece ter sido substituído pela utilidade do ser.
Por uma vez Ying Ying retira um pouco mais de comida para si e logo é censurada e obrigada a dividi-as com as irmãs. Assim que é deixada a cargo do seu avô é-lhe dito que não se dirija mais à tia para comer.
A solidão de Ying Ying vem da maneira como é enviada para se tornar útil e compensar aquilo que come. A maturidade que nela se constata vem da falta de alternativas. E de um abandono ocorrido numa idade crucial.
Só as irmãs a impediam de tombar na indiferença mas, depois de levadas, nada lhe resta de proveitoso e havemos de descobrir que a menina que nos parecia cuidadosa e doce no início se tornou violenta e ameaçadora para algumas das outras crianças.
Poderíamos chamar melancolia à maneira como ela observa em silêncio o horizonte ou a família, mas é inevitável crer que se trata já de um rompimento com o enlace humano que poderia vir a sentir.
Basta ver como em duas horas e meia de material nem por uma vez alguém reconhece a presença da câmara - excepção feita a um condutor de autocarro que quer cobrar o bilhete - assim deixando perceber que um observador de corpo presente já nada significa para quem nunca possa ter adquirido a consciência dos limites de exposição, de distanciamento e de pudor.
Digamos que, por aí, o documentário ganha a título de veracidade e de quantidade de informação. E com tal hipótese de capturar sem perturbações a realidade, mostra-se inclemente com o público assim levado a sentir ao máximo tanto a claustrofóbica vivência com os outros como a cansativa existência a solo.
Bing Wang, com a sua opção pelo digital, conseguiu conquistar o espaço para experimentar com essa transmissão por via de um plano subjectivo engajado com necessidade de não deixar o controlo governamental apagar a memória da parte da China que não foi levada em direcção ao progresso - ou, pelo menos, em direcção à dignidade humana.
Será para vincar bem na mente de quem vai ver que o realizador se permitiu levar algumas cenas ao ponto da fadiga em vez de ter tentado sublinhar pequenos eventos.
O cansaço que o filme acaba por causar obriga verdadeiramente a um investimento físico do público. E essa exigência deixa uma marca inabalável que um filme mais cómodo falharia em transmitir.
O filme termina e resta a pergunta "O que faremos com o que agora sabemos?". A resposta não é fácil, mas chegar à pergunta foi já essencial, como ver este filme o é neste momento da História.


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