sábado, 5 de maio de 2018

Mariphasa, por Carlos Antunes



Título original: Mariphasa
Realização: Sandro Aguilar
Argumento: Sandro Aguilar
Elenco: António Júlio Duarte, Albano Jerónimo, Isabel Abreu


Em Mariphasa estamos perante um mundo onde não há um único cenário acolhedor. Por todo o lado estilhaços. Mesmo dentro de casa.
Estilhaços que começam no homem. Na face que abre o filme, amassada e cortada.
Através dela entramos num mundo feito de sombras onde os nossos olhos se tornam capazes de ver, obrigando-nos a ceder à evidência de que reconhecemos os instintos assustadores que estão logo para lá da luz.
E cada vez mais para cá da luz, o contraponto humano a essa escuridão. Luz artificial - na sua origem humana - e, por isso, insuficiente.
Pior, uma luz que é mais ameaçadora ainda do que a escuridão. Ilumina o mundo de tons inóspitos e cores doentias.
Sob essa luz todas as vidas no ecrã reforçam a sua perturbação, tensas na última fronteira - expressa pela cada vez menor diferença entre a luz e as sombras - que é a da mentalização da humanidade própria.
Neles há já crueldade, raiva, tensão e violência, mas expressas ainda dentro de certos limites. Limites indignos - serve-se vidro moído a um cão, sugere-se a alguém que se mate - mas limites que não assinalam
Pode-se destruir um carro abandonado ou violentar o próprio corpo em excesso de exercício, pode-se até assombrar os vizinhos com uma intrusão de intenções menos do que benévolas.
Só uma violência mais clara que obrigue (ou convença?) os outros à cedência das suas forças poderá levar à ruptura completa dos moldes de uma existência regulada.
Para quem se coloca perante o filme, essa cedência tem algo de colaboração. A partir de um certo momento não é mais possível desviar o olhar do mundo que Sandro Aguilar criou.
Aliás, não é mais possível desviar o nervo. O filme entranha-se e não se desprende da mente, percorrendo todas as sinapses disponíveis numa sugestão de realidade que extravasa o ecrã.
Muito disso passa pelo trabalho com o som, quase sempre mera insinuação, que com isso se torna inclemente.
O som cria a modorra, hipnótica e que fragiliza a capacidade para reagir com toda a força da consciência ao mundo que brutaliza tanto os seus personagens como as suas testemunhas.
A pequena quantidade de detalhes de narrativa que Sandro Aguilar dá permitem recriar um reconhecimento entre o mundo do ecrã e o mundo para lá da sala.
De tal forma reduzidos a um essencial que evitam abafar a experiência sensorial que está para lá de uma materialização de pontos comuns.
O realizador não quer que haja interferência na transmissão de que o que se está a passar, fá-lo na nossa mente. Por isso é realidade, como diz a criança ao acordar dum pesadelo.
O filme termina com a fluorescência da Mariphasa, a flor que impede que um homem se transforme em monstro (lobisomem).
Resta saber se há necessidade dela quando ser homem é, já de si, ser como o lobo. Brinca-se com uma máscara de lobo, deixa-se a caça ao alcance da mão, vive-se com os cães, vagueia-se pela noite fora, aprecia-se a destruição.
A Mariphasa é apenas a aspiração que se mitifica para crer na possibilidade de voltar a ser normal num mundo que tem novas dores capazes de nos transformar.
Nem a melancolia de Lee Hazlewood pode ensinar como antecipar a violência do que está para vir mesmo se nos avisa que The hurt I hurt is nothing like the hurts I've hurt before.




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