domingo, 6 de maio de 2018

O Processo, por Carlos Antunes



Título original: O Processo
Realização: Maria Augusta Ramos
Argumento: Maria Augusta Ramos
Elenco: Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, Michel Temer


Apesar de ser uma excelente tirada da parte de Lindbergh Farias, até para dar o título ao filme, não estamos perante uma revisitação do impeachment por via de Kafka.
Desde logo porque se há alguém que não chega a ser personagem do mesmo é Dilma Rousseff. Uma presença pairando sobre o filme, cuja aparição se dá no final num remate de dignidade.
Maria Augusta Ramos não teria podido fazer esse contraponto ao que filmou antes se estivesse a lidar com o Absurdo labiríntico.
De que a realizadora poderia ter feito uma construção visual, a julgar por um dos raros desvios à filmagem processual, quando um cão se passeia pelos corredores de Brasília lado a lado com um político.
Neste filme vê-se a argumentação da realizadora acerca do processo, sem qualquer tentativa de manipulação de uma presença discreta no momento dos acontecimento, com um processo de montagem exímio - o que torna inevitável assinalar a importância de Karen Akerman, outra mulher envolvida neste projecto.
O trabalho delas passou por demonstrar como o espectáculo mediático sem auto-reflexão foi mais forte do que a lógica.
As imagens de abertura, e que ficarão como das mais representivas de todo este processo, são as dos que clamam em nome de Deus, da família, e do Brasil o seu voto no "Sim ao impeachment".
A partir daí só o lado do Partido dos Trabalhadores se mostra sem ser nessa farsa para as câmaras, abrindo as suas reuniões privadas à realizadora.
Reuniões onde acontece a auto-crítica, mesmo se não ficam algumas dúvidas sobre se o grau das mesmas é suficiente ou se resultará numa emenda futura à forma de fazer política.
Tanto faz que Maria Augusta Ramos tenha partido para o filme com uma convicção política firme ou que tenha formado uma visão mais direccionada porque só teve acesso priveligiado a um dos lado da contenda.
Não só os seus argumentos parecem fazer sentido contra aquela forma de espectáculo que sublinha um processo de resultado pré-determinado, como ela e a sua montadora tratam de criar um personagem destacado com quem se trava o combate, Janaína Paschoal.
O vazio processual não existe e é difícil sustentar duas horas de filme sem um "vilão" e Janaína pede para ser mal tratada. Também porque parece ser a única pessoa do lado contrário ao dos "petistas" que se prestou a ser filmada em alguns momentos mais privados.
Janaína permite-o porque, apesar do que possa dizer, a sua sede de protagonismo existe. As suas acções demonstrarão isso, seja pelas selfies que aceita tirar ou pelas mensagens de força que sente poder dar a localidades do Brasil onde nem sequer foi.
O seu folclore acerca da religiosidade da Consitutição - "único livro sagrado" - não a impede de fazer promessas a representantes religiosos (ou de seita?) que querem usar a celebridade contra a causa do aborto.
Ramos e Akerman tratam, depois, de caracterizar a jurista nos seus próprios moldes, infantilizando-a até quando se demoram nela a beber um pacotinho de leite com chocolate.
Fica esclarecido que a hipótese de um convicção desde o início do projecto é a mais válida, mulher filmando com mulheres um processo contra uma Presidenta.
Como todos os filmes, também este necessitava de um ponto de vista determinado, e a intimidade com o Partido dos Trabalhadores só faz crer que tal é justo pois os outros mantiveram as suas congeminações em segredo.
Chegado em 2018, quando imensos desenvolvimentos políticos se seguiram a este processo, terá menos urgência mas um sentido mais perene de rememoriação em tempos que a História corre demasiado depressa para ficar assente com convicção.
Mesmo essa memória do que ocorreu exige conhecimento prévio, visto que a realizadora evita contextualizar as figuras que filma - em certa medida as suas identidades são menos importantes do que as personagens colectivas que estão de cada lado da barricada.
Por outro lado, a falta de conhecimento profundo beneficia a visão do filme, aquilo que se capta não vem de viés pela convicção prévia.
Não só faz do decorrer do processo em si a figura central de reflexão para o público português, permite que a leitura do trajecto cinematográfico deste filme seja feito em descoberta, aceitando a construção que Maria Augusto Ramos faz dos acontecimentos. Mesmo que sejam verdadeiros.




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